Mal posso esperar...

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Puta merda. O fim de ano já está aí. E hoje tive a infelicidade de ouvir uma música natalina, que, conseqüentemente, lembrou-me das festividades de fim de ano... Ah, que broxante. Acabou comigo. E com a minha pequena esperança de algo melhor e de felicidade próxima. Por quê? Porque todo fim de ano é a mesma coisa.

É mesmo foda. Começa pelo Natal, que é aquela coisinha chata em que todos insistem em falar em como a data perdeu sua real significação. Porra, como eu posso esquecer de que o Natal é o dia dos presentes, e do velho pedófilo, se ficam me lembrando disso a cada ano?

Mas a virada de ano é o disparo à queima roupa... Ainda mais agora, que ela parece uma noite qualquer. Qualquer não digo, mas vazia, uma noitada irrelevante. Tem aquela sensação de que mais um lote de amizades venceu. Mais um ano inteiro até o próximo marco da auto-avaliação de incapacidades.

Mas o pior do dia 31 do doze, ou 1 do um, é a sensação de que alguém está vivendo a sua vida. A minha vida. A sensação de que... eu, não sou importante, nem pra mim, nem pra ninguém em especial. Mais um ano, e eu não fiz nada.

E ainda prevejo muitos acontecimentos ruins daqui até lá, logo estará tudo muito pior do que imagino, pra variar.

Mal espero. E posso esperar mal, mas prefiro evitar isso agora.

A dinâmica dos corpos e mentes

Postado por Rafael em

Terra amada, 6 de dezembro de 1996.

Caríssimo senhor W,

O concreto, o aço, e um pouco de matéria orgânica. Sim, as cidades. Da última vez que fui a uma, quase não pude escapar das garras institucionais... “Jesus te ama” (cristãos invasores!), diziam eles, “você está preso!”, e até “vamos, coma e durma no abrigo”. Ora, eu corri, corri e andei quando cansei... Esses mortos não sabem que morreram!

Eles acham que me enganam! E me assustam, caro senhor W, pois não aceitam minha felicidade anormal aqui, no meio do nada. Mas este é o nada mais completo que se possa imaginar! As pessoas sempre estão fazendo nada, não é mesmo?!

Mas não é sobre as cidades ou o nada que gostaria de tratar com o senhor, estimado W. Gostaria de lembrar-lhe de nosso antigo amigo, o senhor S, que há muito cometeu suicídio. Talvez não saiba, mas ele cometeu...

Pois bem, deixe-me iniciar. Em 1984, o senhor W. começou a escrever um artigo sobre a insanidade. Na ocasião, eu trabalhava como seu assistente, sendo responsabilidade minha a nossa temporada no hospital de enfermidades psicológicas soviético. O local era imponente, se tratava de uma antiga fortaleza czariana, que defendia São Petersburgo. Depois do acelerado processo de urbanização que se passou durante nossa infância, o forte foi obsorvido pela cidade, sendo que minha casa ficava a alguns minutos de lá. Mas disso o senhor deve lembrar, não?

Bom, o fato é que S observava os enfermos durante longas horas, e chegava a travar diálogos com os pobres diabos. Sua intenção, segundo me disse, era decifrar a lógica daqueles ex-combatentes desequilibrados. Não tardou até que alcançasse os primeiros progressos... Gostava, sobretudo, dos homens que voltavam da África. O clima de lá, como o senhor deve saber, era, e é, muito desagradável para nós, filhos da tundra. Somado isso ao medo de um ataque capitalista e à distância da Pátria, os homens eram, deveras, muito desequilibrados lá.

Muitas semanas passadas desde o início de seus estudos, o senhor S começou a perguntar-me sobre patologias psicológicas. Respondi que não me interessava por tal assunto, e que mesmo que tivesse alguma tese sobre o assunto, elas seriam muita vazias. Nesta ocasião percebi o quanto havia mudado seu olhar e suas atitudes. Ele estava taciturno e esquivo...

Espero que não se incomode com a efêmera narração, senhor W. Eu tentei não me incomodar, mas um ano inteiro se passará desde os parágrafos anteriores ao que ainda virá. Não faço isso por mal, ainda que o faça calculadamente.

Bem, o senhor S passou de estudioso à interno... Fui visitá-lo certo dia, e enquanto esperava que chegasse, fiquei em seu alojamento. Passei os olhos pelo lugar, que estava muito limpo. Acabei percebendo o antigo caderno de anotações de S, e decidi lê-lo; as anotações não podiam ser chamadas de antigas, de fato. Ele continuou a escrever seu artigo, que embora tivesse o mesmo assunto, mudou completamente de foco: os loucos eram os "externos", como eles nos chamou. Eram dezenas e dezenas de páginas com insanidades desmedidas e relatos assustadores. Dentre seus desvairamentos, estava o de que eu era um psicopata.

Ora veja! Eu? Não. Se matei foi por gosto e prazer, e não por descontrole ou insconsciência de meus crimes. Que graça teria se eu não sentisse que era errado?! Mas não pretendo agastar seus velhos olhos com uma longa carta. Deixarei o relato de meus assassínios prediletos à outras epístolas. Voltemos ao suícidio...

Descobri que o senhor S não estava louco, e que usou aquela velha fortaleza como os soldados sãos faziam antigamente. Usou-a para defender-se. De mim. Que insulto! Mas fui notado dentro do dormitório do senhor S. Aparentemente ele havia recrutado aqueles soldados birutas. Levei alguns socos e pontapés, mas consegui fugir e manter meu penteado e ternos alinhados.

Creio que ele não pretendia me denunciar. Mesmo porque, para saber tanto, ele já estava a me estudar durante longo tempo. Mas eu não podia arriscar. Invadi o forte na mesma noite...

Com dinheiro, o mundo socialista estava aos meus pés. Contratei alguns soldados e marchei em direção ao nosso amigo. Arrebentei o enferrujado portão e adentrei o forte sem dificuldades. Ampunhando um Kalashnikov, me diverti com quem atravessou meu caminho. Os soldados, cristãos estúpidos, se detiveram à porta.

Muitos passos, muito sangue, muitos gritos e alguns cartuchos depois, cheguei até o senhor S. Não podia matá-lo com uma arma. Não, eu não. O levei para a torre leste, com muito desgosto, pois ele estava a tremer, chorar e urinar em suas próprias calças. Calças alvas! No topo da torre, travei com ele um longo diálogo. Quase me arrependi de meus atos...

Quase, porque não tive chance de o fazer: sentado no parapeito, eu é que chorava. Sentia por ter que matá-lo. Matar meu amigo de infância. Pisquei, e senti um vento frio baster em minhas costas. Abri os olhos e vi a Lua. Cai. Cai não, fui empurrado...

Meu corpo... Corpo?! Não havia corpo. Eu senti ódio. Muito profundo por sinal... Mas o senhor deve estar se perguntando, "mas e o suicídio?" Este foi suicídio! Estou tramando a morte dele desde então. Ainda não a consumei, mas é apenas uma questão de tempo!

Gostaria apenas que o senhor soubesse: há morte após a morte, e aqueles que falam em Alá são os que devem ser ouvidos.

Cordialmente, Senhor R.

Acontecimentos aleatórios

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Atenção: este assunto requer reflexão em posição fetal.


É possível evitar conscientemente um problema. Assim como é possível assistir aos fatos arranjando-se aleatoriamente de forma positiva. Ao menos quando encarados sob uma perspectiva particular e, de certa forma, egoísta.

Mas como saber se nos livramos de um problema do qual não tinhamos consciência? Creio que isso seja impossível. Logo, tornam-se praticáveis afirmações arbitrárias, como: “Estive perto de morrer em um vulcão numa seqüência de acontecimentos randômicos ligeiramente infelizes”. O que pode ser verdade. Ou não.

Bom, toda essa linha de pensamento, curta e quase direta, serviu apenas para a seguinte questão: Por que as pessoas insistem em questionar os fatos pretéritos? Ah, são tantas questões paradoxais, tantas concepções adversas e singulares... Haja paciência para divagar tanto! E cafeína, e tempo livre também...

A única questão que mata (figurativamente) é não ser capaz de calcular as conseqüências do prolongamento da própria vida. Ou pior: vai que você salvou a de outra pessoa?

É, mais uma questão complexa e inútil para o futuro. Agora não sei se salvo ou negligencio um moribundo... Vai que o indivíduo é uma espécie de Hitler atualizado, pronto para controlar o Estado e as organizações civis ? Ele também pode ser algo como um "judeu esfolado"... No caso, não serei o bom Samaritano se não o salvar.

Agora para instaurar a neurose de vez por todas: vai que você salva alguém com uma cura universal? Pan demoniun.

Dizem que sou apático, pois acredito em fatalidades como um fator de controle populacional. Sou realista, isso sim! Dizem que digo isso porque nunca perdi ninguém próximo. Eu já perdi muitas pessoas próximas... Mas de fato, nenhuma chegou a morrer. Mais um motivo para defender este ponto de vista agora! Depois posso não ser mais capaz...

Só posso dizer o que um antigo amigo (talvez o mais antigo), me ensinou. Segundo ele “fazer uma análise fria dos fatos é sempre aconselhável. Não carregue ressentimentos do passado, pois nada daquilo aconteceu com você”. Eu não entendi quando ele me disse, e sinceramente, ainda não entendo. Aliás, nem sei se há nexo entre esta passagem e o texto.

A verdade é que não tenho o que falar. Só tenho sono.

Sempre olhares...

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– Eu sei o que você está pensando. (Ele afirma).

– Então sabe que tem que ir.

– Prefiro que me diga...

– Acabei de dizer.

– Você não acha que eu mereço mais, depois de tudo?

– Você disse que sabia o que eu estava pensando. Por que está dificultando as coisas então?

– Não sei... Estou sem palavras.

– Eu não gosto disso também. Mas já estava na hora de acontecer. A gente não pode deixar tantas coisas se acumulando, sabe...

– Ah, mas por que temos que nos separar?

– Vai ser melhor, você verá.

– Não sei... Com você eu sei que conseguiria, mas sozinho...

– Confie em mim, meu amor. Será melhor.

– Ta bom, você é mais velha e sabe mais da vida.

– Engraçadinho! Agora vá!

– Calma! Você sabe que eu não gosto disso.

– Eu também não, mas acontece.

[...]

– Mas lavar louça?! Ah meu saco...

– Eu vou varrer o chão, oras.

– Saco mesmo. É muito mais fácil varrer, poxa!

– E dai? É a sua vez de ficar com a louça!

– E quando foi a sua?

Ela o beija (elas sempre sabem o que fazer...).

– Isso responde sua pergunta?

– Claro que não. Mas se essa é sua resposta para as perguntas difíceis... O que Nietzsche disse sobre o amor mesmo?

– “Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal”. Há!

– Saco mesmo! Hmmm... Por amor a você, farei o “mal” de não lavar a louça então!

Ela o beija novamente...

Mudou de idéia?

Ele a olha friamente. (Sim... Mudei de idéia. Mas e quando eu não fizer mais questão de sua presença, como me pedirá algo? - pensou).

Pobre rapaz, mal sabia que era ela quem dava as cartas. Ele, dispensá-la? Nem por um decreto...


Sozinho... Ou não

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Tenho algo a lhe dizer sobre... Sua pessoa. Não raramente você fica farto de ser afetado por outras pessoas. Talvez ainda não tenha notado, mas... Fica que eu sei.

Por exemplo, você gosta de alguém e fica feliz quando acontecem coisas legais com vocês! Sim, e por que não? Isso é bom, mas em contrapartida basta um tom de voz estranho, um sorriso não recebido ou um comentário desatencioso para que você fique chateado ou com alguma sensação estranha. E isso é ruim, não?

Foi retórica, mas... Sim, é desagradável. E quando este tipo de comportamento torna-se mais constante, vocês começam a se distanciar... E lá se vai mais uma ou um.

Com o tempo, talvez haja a possibilidade de reconciliação... Como qualquer pessoa que faz bom uso da razão, você se lembrará dos maus momentos e não criará laços com este alguém novamente, certo? Ah, engana-se camarada... Porque da forma mais irracional e estupidamente sentimental você começará a lembrar-se dos bons momentos, que já estavam turvos devido ao tempo ou algum bloqueio mental.

Então lá está você, extremamente feliz porque está bem com aquela pessoa novamente! Ah meu amigo, você não é tão racional quanto pensava, hein?

Mas quem pode culpá-lo? Se desta maneira você está mais feliz! Sim, muito feliz! Mas por quanto tempo? Não sabemos, não é? Não senhor, não sabemos...

Além da culpa que não pode recair sobre seus ombros, caro amigo, também não podem afirmar que goste de autoflagelação emocional! Mesmo porque, acabei de inventar este termo (e devo admitir que ele não soa muito bem). Mas não é só: o fato é que talvez seja essa sua natureza, sabe? Ficar triste, feliz, triste, feliz e assim indefinidamente...

Mas antes de começar uma revolução introspectiva de autopiedade, lembre-se disso: é assim com você, comigo e com quase todos que você conhece (quase todos porque talvez você conheça alguém em estado de coma ou algo do gênero).

Ah sim, e antes que me esqueça, o ponto mais importante: Nem sempre são os outros que falam em um tom estranho, que não sorriem ou que não dão importância a outra pessoa.

Em suma, autopiedade é coisa de bicha, você não é único e não está sozinho.

Todo meu passado e futuro

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Havia duas pessoas em uma sala de paredes e móveis brancos. O cômodo estava situado no topo de uma alta colina, coberta por neve. Pelas amplas janelas notavam-se nuvens prateadas, que mais pareciam gigantes gotas de mercúrio.

As duas pessoas debatiam há dias sobre assuntos diversos, até que chegaram a um ponto já esperado por ambos:

– Você precisa de ajuda. De minha ajuda - diz a Beatriz de Dante, com uma expressão chorosa e um sorriso amável.

Não. Toda ajuda de que necessito está aqui, comigo - responde ele.

Não os vejo agora...

– Eu tampouco, mas estão comigo. Sempre me observam.

Mas eles são justamente as causas de seus problemas!

– E há companhia melhor para encontrar soluções?- diz em tom irônico, enquanto esboça um sorriso arrogante.

– Podes morrer sem minha ajuda.

– Não. Eu poderia se interferisses em meu trabalho.

– Trabalho?

– Veja... Em minha mente há dezenas de outros “eu”. “Eles” habitam diferentes círculos em minha mente - assim como na rota de vosso Dante. E quanto mais distante da Razão é o círculo, mais emocional e instintivo é meu alter ego. No entanto, até que este “eu externo” seja atingido, os impulsos são filtrados e perdem grande parte da intensidade. Por isso achas que sou uma pessoa fria...

– E não és?

– Caso aconteça algo errado, e os impulsos não sejam filtrados, há o que eu chamava de “senso de ridículo”, mas que na verdade é a minha “consciência plena”, que não está ligada aos pragmatismos do que você chama de sociedade. Este “eu superior”, diferentemente dos outros, não está a preso a nenhum círculo. E ele aconselha e ajuda-me quando estou prestes a perder o controle.

Sim, mas...

– Bom, como eu disse, toda a ajuda de que necessito está aqui.

Havia duas pessoas em uma sala, que agora, possuía paredes e móveis negros. Esta sala não mais estava em uma colina, mas sim flutuando em um lago. E das nuvens dantes notadas pela janela, desceram anjos.

Eram sete anjos sem asas, portadores de olhos completamente negros. Trajavam ternos e túnicas brancas e estavam descalços. Possuíam aparência masculina, expressões sérias e um tanto quanto indiferentes e arrogantes.

Ouviram-se batidas firmes na porta do cômodo. Chorando, Beatriz atendeu-a, e viu algo insensato: era, indubitavelmente, um alter ego do moço com quem conversava, mas ele possuía olhos negros e inexpressivos, os quais inspiravam medo e até mesmo incerteza, pois não era possível saber para onde olhavam.

Ele entrou na sala, e sinalizou a porta à Beatriz, para que saísse. Lá fora dois anjos convencionais a esperavam, e levaram-na para uma construção distante dali.

Sabia que resistirias. - diz o anjo.

– Sim. Mas não me sinto bem sabendo que ainda não disponho de vossa confiança. E Beatriz... Gostava tanto dela...

– Não te preocupes com ela. Sabes que ela será mais feliz longe de ti.

– Tens mesmo que me testar assim?

– Não mais. Hoje conhecerás vossa Beatrice. Vossa verdadeira Beatrice!

– Gostaria de saber o nome dela... O nome real.

– Creio que já a conheces. Vamos, venha comigo.

Os outros anjos juntaram-se a eles, e então mergulharam no lago. Naquelas águas frias, o rapaz viu todas as imagens que costumava ver quando criança, todas suas amantes, além de fragmentos do futuro. Não havia nada a temer ou duvidar.

Após certo tempo de submersão, notaram a presença de uma moça. Os anjos entreolharam-se, e sorriram ao ver a felicidade de seu protegido. Uma felicidade tão intensa que foi quase capaz de fazê-lo esquecer que, ao contrário de seus protetores, ainda precisava respirar.

Com grande esforço, ele foi capaz de chegar até “Beatrice”, e constatou, com extrema felicidade, que realmente já a conhecia! Sentindo-se cada vez mais desconectado àquele mundo, optou por um primeiro e último beijo na moça, e então morreu. [...]

Abraxas

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Cheguei a um ponto em que não sei o que sou eu. E apesar de não acreditar na polarização “bem e mal”, tão comum na literatura barata e amplamente difundida pelas mídias de massa, não sei em qual grupo me encaixaria.

Sempre achei que era uma boa pessoa, no entanto, imagino que todos pensem isso de si mesmos. E não posso crer em meu julgamento no assunto, já que estou há muito tempo em minha mente. Tampouco posso crer nos julgamentos de outrem, que podem não me conhecer como me conheço. Paradoxal...


Aquela mulher, uma mãe, e a pequena menina, sua filha. A mãe julgava-se boa; a menina era esperta o bastante para saber que ambas não tomavam decisões sensatas.

A mulher processava o condomínio no qual morava, pois sua filha havia se machucado no que ela chamou de “armadilha letal”. O fato é que sua filha, que brincava no parquinho, caiu e fraturou o braço além de deslocar o ombro direito. Segundo a mãe, o acidente foi ocasionado pela falta de sinalização adequada...

Aquele homem, vestindo um terno, andava pela rua. Mas, repentinamente, decidiu deitar-se na calçada. E lá ficou, até que outro homem, também de terno, tropeçou em seu corpo:

– Jesus! Perdoe-me, eu não o vi aí. Você está bem?

– Sim.

– O que houve, você caiu?

– Não. Estou bem. Por favor, deixe-me em paz.

– Você esteve bebendo.

– Não estive bebendo.

– Por que está deitado no meio da calçada? Você poderia ter quebrado meu pescoço!

–...

– Olhe, o que há de errado? Aqui, deixe-me ajudá-lo.

– Não! Não toque em mim!

Não demorou muito até várias pessoas começaram a aglomerar-se para ver o que o estava acontecendo:

– O que há com ele? Ele caiu?

– Não... Ele não caiu. - respondeu o rapaz.

– Ele está machucado?

– Não, por favor, todos vocês, deixem-me em paz - disse o homem.

– Ele deve estar louco.

– Não sou louco, apenas deixem-me em paz.

– Por que está deitado aí? Por que não me diz qual o problema? - indagou o rapaz que tropeçou.

­– Veja, não posso lhe dizer... Não seria correto.

Então chegou um oficial - um dos que observam as pessoas assegurando-se de que o direito de vingança continua sendo monopolizado pelo Estado – e perguntou:

– Você está bem?

– Estou bem. Por favor, apenas deixe-me deitar aqui.

– Temo que não possa deixar que faça isso senhor.

– Apenas me diga porque está deitado ai! Diga-me! - exclamou o rapaz.

– Você não quer saber, acredite em mim.

– O que há? Vamos todos morrer, é isso? Por isso está deitado aí?

– Não.

– Diga-nos, pelo amor de Deus! - gritou o oficial.

– Querem saber por que estou deitado aqui?

– Sim!

– Querem mesmo saber?

– Diga-nos!

– Sim, lhes direi, direi porque estou deitado aqui. Mas que Deus me perdoe, e que Ele nos ajude, porque vocês não sabem o que estão me pedindo.

– Diga-nos!

Eu realmente sinto por não poder escrever as palavras dele. Ninguém poderia. Mas peço que não alimentem sentimentos negativos em relação a mim; não conto o famigerado segredo porque eu mesmo não o sei. Apenas imagino que esteja relacionado à descoberta do responsável de todos os nossos problemas ou algo do gênero.

Aqueles homens e mulheres, todos vestidos, decidiram deitar-se na calçada. Não estavam loucos, não haviam caído. Aparentavam olhar o céu, a rua... Mas estavam olhando para si mesmos, tentando descobrir algo mais adequado à situação além de deitar-se.

O condomínio ofereceu um acordo, no qual pagaria por todas as despesas médicas. Mas a mulher, orientada por um homem, que já andou na rua, de terno, almejava uma indenização milionária. Afinal de contas “minha filha poderia ter morrido! E porque tentou acender um cigarro enquanto estava pendurada naquela 'armadilha'! Se houvesse placas dizendo que era proibido fumar ela estaria bem!” - dizia ela. O pior é que aquilo fazia sentido para alguém.

PS: Há um link, semi-secreto, neste blog. Ele o levará à representação gráfica em movimento do que ocorreu. E Radiohead é o que há, ficando somente atrás de água e outras coisas.

Talvez única...

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Estavam deitados no sofá da sala, lendo e criando laços inconscientes. O cômodo era iluminado pela luz proveniente da janela. Estavam confortáveis, pois era um dia frio no verão, e lá fora caía uma suave garoa, que fazia o rapaz lembrar de sua terra natal. Até que, suavemente, ele rompe o silêncio:

Hey... posso te fazer uma pergunta?

– Hmmm... pode.

– Você acha que eu deveria desenhar coisas coloridas?

– Han?

– Desenhar... coisas... com cor.

– Essa foi a parte que entendi, bobão. Não entendi o motivo da pergunta.

– Ah ta... Eu pergunto o que eu quiser, com ou sem motivo. Agora responda!

Houve um momento de silêncio. A indelicadeza dele a surpreendeu; “O que aconteceu com o meu amável moço?”, pensou ela. Então acontece algo interessante, que demonstrava o quanto estavam ligados (e foi com algum incômodo que ele percebeu isto, muito tempo depois): eles conversaram por olhares.

– Peça com jeito!

– Ahhh... Você sabe que eu estava brincando.

– Não, eu sinceramente não sei.

– Eu sou assim, “atuante”. Era só brincadeira, bolas...

– Bolas bulhufas! Peça com jeito!

– Ta bom...Poderia me responder, por favor, ó magnânima moça a quem dedico tantas músicas?

A conversa volta ao âmbito vocal, sem que nenhum deles conceda o devido valor ao que ocorreu.

– Bom mesmo! Vejamos... Você não sabe pintar direito. Nem desenhar.

– Bobona! Sei sim! Aqueles borrados fazem parte da minha arte, que é muito complexa pra você...

– Ta ok... Eu responderei com sinceridade se você me disser qual o motivo da pergunta...

– Ah, não sei...

– Continue...

– Sei lá, é que vai que você goste mais deles assim...

– Ah, é por mim? Que fofo!

–Ta bom, ta bom... Mas e aí, o que acha?

­– Prefiro como estão agora, porque sei que é assim que você prefere... Fofinh...

– Pára! Mas então beleza... Desenhos sem cor então...

– To até feliz com você até...

– Ahn, que legal...

– Não se faça de mau!

– Eu nasci mau! As instituições que me estragaram... Quer mais gelatina de uva?

– Quero. Quer continuar a ler comigo?

Ele sorri discretamente e a olha de modo hostil (daquele dia em diante, aquilo significava “sim”).

Eles eram assim, tão unidos quanto diferentes. Ainda me pergunto se daria certo. Talvez ainda possamos descobrir! Mas este "talvez" é extremamente remoto.

"Barrel of a Gun”

Postado por Rafael em

Cada um de nós deve encontrar sua noção de permitido e proibido. Tudo não passa de uma questão de comodidade. Há aqueles que acham mais cômodo não ter que pensar por si mesmos e serem seus próprios juizes, então se submetem às proibições vigentes; acham isso mais simples. Mas há outros que sentem em si mesmos a própria lei, e consideram proibidas certas coisas que os homens de bem perpetram e a todo instante permitem outras sobre as quais recai uma geral interdição.

Qual a sua opinião à respeito da história da Marca de Caim? Crê que tal marca é um símbolo maléfico? Há quem creia que é um símbolo de... liberdade.

Exemplificarei: Segundo a Bíblia, Caim matou Abel por inveja. Caim representa o homem rebelde (o que sente em si a própria lei), enquanto Abel era o bom homem. E nesta relação podemos adotar outra interpretação diferente da bíblica:

Digamos que Caim e Abel não existiram realmente; eles representavam grupos polarizados. Consideremos que a relação de irmandade religiosa é deveras abrangente, de forma que todo assassínio é um crime entre "irmãos". Mas segundo estas suposições, o que representaria tal história (ou estória) então? Simples:

Os ditos covardes não conseguiam viver sem a comodidade da submissão, já os Caims aceitavam as normas sociais, além de usar a própria definição de certo e errado. Algo audacioso.

Creio que em certo ponto os submissos começaram a se indagar: “Já que eles não são corretos por que não são punidos?” E após muito pensarem, "descobriram": Acontece que estes que vivem fora do senso comum (Caim, no caso) não mereciam contato com os homens de bem, que eram a classe ideologicamente dominante. Eles mereciam marginalização. Bom, também podemos ser mais sinceros e diretos: "Nós, homens de bem, tememos estes 'Cains'... então decidimos sair de perto deles!"

Acredito que o que eu queria expor ficou claro. Ao menos para mim... O que não é nada convincente. Então:

Há pessoas que escolhem usar a própria lógica para decidir o que é correto. Mas as outras pessoas, que sofrem todo tipo de privações esdrúxulas, não conseguem aceitar isso. De forma que os que não estão de acordo com o consciência comum e vigente sofrem ostracismo.

Não há sentido em várias privações, as quais a "classe dominante" sucumbe atualmente. Não vejo a igreja como "privação", mas não preciso ir à uma para falar com Deus: se Ele está em todos lugares, porque eu iria à um espaço físico, que não obstante é corrompido?

Eu sei que existem pessoas que precisam destas normas questionáveis. Mas se sou capaz de raciocinar por que não expressar minha opinião livremente?

Mas como disse antes: cada um deve achar seu conceito de certo ou errado; escolher entre pensar e assumir a responsabilidade de seus atos, ou submeter-se à outras normas, de forma que qualquer erro poderá ser delegado à outrem.

PS: Não, não sou ateu. Sou cristão – mas para mim isso não significa que tenho que aceitar todas as proibições dogmáticas as quais tentam me submeter.


Inspirado em Demian de Hermann Hesse.

Verdades Inconvenientes

Postado por Rafael em

Eu estava na última noite do ano passado, então eu sei que este é outro ano. Não preciso que me avisem.

Aliás, ontem foi uma noite vazia em significado. “Nem parece ano novo”, disse meu alter ego, e concordei plenamente. Ultimamente todas as datas comemorativas têm sido vazias. O que me leva a crer que estou vazio. Mas este não é o assunto do texto.

Não creio que teremos grandes mudanças neste ano, mesmo porque eu não sei o que mudar. Ao menos eu sei o que esperar: muitas pessoas falarão sobre desenvolvimento sustentável, preservação do meio-ambiente e outras sobre corrupção.

Ah sim, a velha hipocrisia atuará como sempre. Al Gore fala sobre os impactos ambientais e aconselha aos americanos que diminuam o consumo de energia em suas casas, sendo que a sua consume 20 vezes mais energia que a média nacional norte americana (as fontes são questionáveis, mas é um fato que seu modo de vida não é um exemplo de sustentabilidade).

Eu prefiro não citar o nome dos políticos hipócritas e corrompidos. Por quê? Porque a política não está relacionada com a hipocrisia deles, e sim com a da população, e por conseqüente, é sua hipocrisia e minha também.

“Malditos ladrões, roubam tanto que temos que pagar todos estes impostos”, esta é uma frase comum, mas comum também é o consumo de produtos piratas: Cerca de 70% da população brasileira consome, conscientemente, pirataria (você consome e eu também!). As pessoas ficam revoltadas: “que vergonha isso!”, “só podia ser Brasil, país cheio de gente burra”. Mas os Homo asinus brasileiros escolhem não fazer nada além de reclamar.

Ah sim. Não posso deixar de falar da minha hipocrisia, afinal de contas sou tão ou mais hipócrita que você, o que não me impediu de escrever isto.

(Enquanto pesquisava na Internet, vi um anúncio do “maior site de relacionamentos entre evangélicos do Brasil”. Ou seja, um site para encontrar namorados virtuais só para evangélicos! Nada mais conveniente enquanto escrevo um texto sobre hipocrisia.)

Fontes:
Al Gore
Pirataria