A dinâmica dos corpos e mentes

Postado por Rafael em

Terra amada, 6 de dezembro de 1996.

Caríssimo senhor W,

O concreto, o aço, e um pouco de matéria orgânica. Sim, as cidades. Da última vez que fui a uma, quase não pude escapar das garras institucionais... “Jesus te ama” (cristãos invasores!), diziam eles, “você está preso!”, e até “vamos, coma e durma no abrigo”. Ora, eu corri, corri e andei quando cansei... Esses mortos não sabem que morreram!

Eles acham que me enganam! E me assustam, caro senhor W, pois não aceitam minha felicidade anormal aqui, no meio do nada. Mas este é o nada mais completo que se possa imaginar! As pessoas sempre estão fazendo nada, não é mesmo?!

Mas não é sobre as cidades ou o nada que gostaria de tratar com o senhor, estimado W. Gostaria de lembrar-lhe de nosso antigo amigo, o senhor S, que há muito cometeu suicídio. Talvez não saiba, mas ele cometeu...

Pois bem, deixe-me iniciar. Em 1984, o senhor W. começou a escrever um artigo sobre a insanidade. Na ocasião, eu trabalhava como seu assistente, sendo responsabilidade minha a nossa temporada no hospital de enfermidades psicológicas soviético. O local era imponente, se tratava de uma antiga fortaleza czariana, que defendia São Petersburgo. Depois do acelerado processo de urbanização que se passou durante nossa infância, o forte foi obsorvido pela cidade, sendo que minha casa ficava a alguns minutos de lá. Mas disso o senhor deve lembrar, não?

Bom, o fato é que S observava os enfermos durante longas horas, e chegava a travar diálogos com os pobres diabos. Sua intenção, segundo me disse, era decifrar a lógica daqueles ex-combatentes desequilibrados. Não tardou até que alcançasse os primeiros progressos... Gostava, sobretudo, dos homens que voltavam da África. O clima de lá, como o senhor deve saber, era, e é, muito desagradável para nós, filhos da tundra. Somado isso ao medo de um ataque capitalista e à distância da Pátria, os homens eram, deveras, muito desequilibrados lá.

Muitas semanas passadas desde o início de seus estudos, o senhor S começou a perguntar-me sobre patologias psicológicas. Respondi que não me interessava por tal assunto, e que mesmo que tivesse alguma tese sobre o assunto, elas seriam muita vazias. Nesta ocasião percebi o quanto havia mudado seu olhar e suas atitudes. Ele estava taciturno e esquivo...

Espero que não se incomode com a efêmera narração, senhor W. Eu tentei não me incomodar, mas um ano inteiro se passará desde os parágrafos anteriores ao que ainda virá. Não faço isso por mal, ainda que o faça calculadamente.

Bem, o senhor S passou de estudioso à interno... Fui visitá-lo certo dia, e enquanto esperava que chegasse, fiquei em seu alojamento. Passei os olhos pelo lugar, que estava muito limpo. Acabei percebendo o antigo caderno de anotações de S, e decidi lê-lo; as anotações não podiam ser chamadas de antigas, de fato. Ele continuou a escrever seu artigo, que embora tivesse o mesmo assunto, mudou completamente de foco: os loucos eram os "externos", como eles nos chamou. Eram dezenas e dezenas de páginas com insanidades desmedidas e relatos assustadores. Dentre seus desvairamentos, estava o de que eu era um psicopata.

Ora veja! Eu? Não. Se matei foi por gosto e prazer, e não por descontrole ou insconsciência de meus crimes. Que graça teria se eu não sentisse que era errado?! Mas não pretendo agastar seus velhos olhos com uma longa carta. Deixarei o relato de meus assassínios prediletos à outras epístolas. Voltemos ao suícidio...

Descobri que o senhor S não estava louco, e que usou aquela velha fortaleza como os soldados sãos faziam antigamente. Usou-a para defender-se. De mim. Que insulto! Mas fui notado dentro do dormitório do senhor S. Aparentemente ele havia recrutado aqueles soldados birutas. Levei alguns socos e pontapés, mas consegui fugir e manter meu penteado e ternos alinhados.

Creio que ele não pretendia me denunciar. Mesmo porque, para saber tanto, ele já estava a me estudar durante longo tempo. Mas eu não podia arriscar. Invadi o forte na mesma noite...

Com dinheiro, o mundo socialista estava aos meus pés. Contratei alguns soldados e marchei em direção ao nosso amigo. Arrebentei o enferrujado portão e adentrei o forte sem dificuldades. Ampunhando um Kalashnikov, me diverti com quem atravessou meu caminho. Os soldados, cristãos estúpidos, se detiveram à porta.

Muitos passos, muito sangue, muitos gritos e alguns cartuchos depois, cheguei até o senhor S. Não podia matá-lo com uma arma. Não, eu não. O levei para a torre leste, com muito desgosto, pois ele estava a tremer, chorar e urinar em suas próprias calças. Calças alvas! No topo da torre, travei com ele um longo diálogo. Quase me arrependi de meus atos...

Quase, porque não tive chance de o fazer: sentado no parapeito, eu é que chorava. Sentia por ter que matá-lo. Matar meu amigo de infância. Pisquei, e senti um vento frio baster em minhas costas. Abri os olhos e vi a Lua. Cai. Cai não, fui empurrado...

Meu corpo... Corpo?! Não havia corpo. Eu senti ódio. Muito profundo por sinal... Mas o senhor deve estar se perguntando, "mas e o suicídio?" Este foi suicídio! Estou tramando a morte dele desde então. Ainda não a consumei, mas é apenas uma questão de tempo!

Gostaria apenas que o senhor soubesse: há morte após a morte, e aqueles que falam em Alá são os que devem ser ouvidos.

Cordialmente, Senhor R.