Todo meu passado e futuro

Postado por Rafael em ,

Havia duas pessoas em uma sala de paredes e móveis brancos. O cômodo estava situado no topo de uma alta colina, coberta por neve. Pelas amplas janelas notavam-se nuvens prateadas, que mais pareciam gigantes gotas de mercúrio.

As duas pessoas debatiam há dias sobre assuntos diversos, até que chegaram a um ponto já esperado por ambos:

– Você precisa de ajuda. De minha ajuda - diz a Beatriz de Dante, com uma expressão chorosa e um sorriso amável.

Não. Toda ajuda de que necessito está aqui, comigo - responde ele.

Não os vejo agora...

– Eu tampouco, mas estão comigo. Sempre me observam.

Mas eles são justamente as causas de seus problemas!

– E há companhia melhor para encontrar soluções?- diz em tom irônico, enquanto esboça um sorriso arrogante.

– Podes morrer sem minha ajuda.

– Não. Eu poderia se interferisses em meu trabalho.

– Trabalho?

– Veja... Em minha mente há dezenas de outros “eu”. “Eles” habitam diferentes círculos em minha mente - assim como na rota de vosso Dante. E quanto mais distante da Razão é o círculo, mais emocional e instintivo é meu alter ego. No entanto, até que este “eu externo” seja atingido, os impulsos são filtrados e perdem grande parte da intensidade. Por isso achas que sou uma pessoa fria...

– E não és?

– Caso aconteça algo errado, e os impulsos não sejam filtrados, há o que eu chamava de “senso de ridículo”, mas que na verdade é a minha “consciência plena”, que não está ligada aos pragmatismos do que você chama de sociedade. Este “eu superior”, diferentemente dos outros, não está a preso a nenhum círculo. E ele aconselha e ajuda-me quando estou prestes a perder o controle.

Sim, mas...

– Bom, como eu disse, toda a ajuda de que necessito está aqui.

Havia duas pessoas em uma sala, que agora, possuía paredes e móveis negros. Esta sala não mais estava em uma colina, mas sim flutuando em um lago. E das nuvens dantes notadas pela janela, desceram anjos.

Eram sete anjos sem asas, portadores de olhos completamente negros. Trajavam ternos e túnicas brancas e estavam descalços. Possuíam aparência masculina, expressões sérias e um tanto quanto indiferentes e arrogantes.

Ouviram-se batidas firmes na porta do cômodo. Chorando, Beatriz atendeu-a, e viu algo insensato: era, indubitavelmente, um alter ego do moço com quem conversava, mas ele possuía olhos negros e inexpressivos, os quais inspiravam medo e até mesmo incerteza, pois não era possível saber para onde olhavam.

Ele entrou na sala, e sinalizou a porta à Beatriz, para que saísse. Lá fora dois anjos convencionais a esperavam, e levaram-na para uma construção distante dali.

Sabia que resistirias. - diz o anjo.

– Sim. Mas não me sinto bem sabendo que ainda não disponho de vossa confiança. E Beatriz... Gostava tanto dela...

– Não te preocupes com ela. Sabes que ela será mais feliz longe de ti.

– Tens mesmo que me testar assim?

– Não mais. Hoje conhecerás vossa Beatrice. Vossa verdadeira Beatrice!

– Gostaria de saber o nome dela... O nome real.

– Creio que já a conheces. Vamos, venha comigo.

Os outros anjos juntaram-se a eles, e então mergulharam no lago. Naquelas águas frias, o rapaz viu todas as imagens que costumava ver quando criança, todas suas amantes, além de fragmentos do futuro. Não havia nada a temer ou duvidar.

Após certo tempo de submersão, notaram a presença de uma moça. Os anjos entreolharam-se, e sorriram ao ver a felicidade de seu protegido. Uma felicidade tão intensa que foi quase capaz de fazê-lo esquecer que, ao contrário de seus protetores, ainda precisava respirar.

Com grande esforço, ele foi capaz de chegar até “Beatrice”, e constatou, com extrema felicidade, que realmente já a conhecia! Sentindo-se cada vez mais desconectado àquele mundo, optou por um primeiro e último beijo na moça, e então morreu. [...]

Abraxas

Postado por Rafael em ,

Cheguei a um ponto em que não sei o que sou eu. E apesar de não acreditar na polarização “bem e mal”, tão comum na literatura barata e amplamente difundida pelas mídias de massa, não sei em qual grupo me encaixaria.

Sempre achei que era uma boa pessoa, no entanto, imagino que todos pensem isso de si mesmos. E não posso crer em meu julgamento no assunto, já que estou há muito tempo em minha mente. Tampouco posso crer nos julgamentos de outrem, que podem não me conhecer como me conheço. Paradoxal...


Aquela mulher, uma mãe, e a pequena menina, sua filha. A mãe julgava-se boa; a menina era esperta o bastante para saber que ambas não tomavam decisões sensatas.

A mulher processava o condomínio no qual morava, pois sua filha havia se machucado no que ela chamou de “armadilha letal”. O fato é que sua filha, que brincava no parquinho, caiu e fraturou o braço além de deslocar o ombro direito. Segundo a mãe, o acidente foi ocasionado pela falta de sinalização adequada...

Aquele homem, vestindo um terno, andava pela rua. Mas, repentinamente, decidiu deitar-se na calçada. E lá ficou, até que outro homem, também de terno, tropeçou em seu corpo:

– Jesus! Perdoe-me, eu não o vi aí. Você está bem?

– Sim.

– O que houve, você caiu?

– Não. Estou bem. Por favor, deixe-me em paz.

– Você esteve bebendo.

– Não estive bebendo.

– Por que está deitado no meio da calçada? Você poderia ter quebrado meu pescoço!

–...

– Olhe, o que há de errado? Aqui, deixe-me ajudá-lo.

– Não! Não toque em mim!

Não demorou muito até várias pessoas começaram a aglomerar-se para ver o que o estava acontecendo:

– O que há com ele? Ele caiu?

– Não... Ele não caiu. - respondeu o rapaz.

– Ele está machucado?

– Não, por favor, todos vocês, deixem-me em paz - disse o homem.

– Ele deve estar louco.

– Não sou louco, apenas deixem-me em paz.

– Por que está deitado aí? Por que não me diz qual o problema? - indagou o rapaz que tropeçou.

­– Veja, não posso lhe dizer... Não seria correto.

Então chegou um oficial - um dos que observam as pessoas assegurando-se de que o direito de vingança continua sendo monopolizado pelo Estado – e perguntou:

– Você está bem?

– Estou bem. Por favor, apenas deixe-me deitar aqui.

– Temo que não possa deixar que faça isso senhor.

– Apenas me diga porque está deitado ai! Diga-me! - exclamou o rapaz.

– Você não quer saber, acredite em mim.

– O que há? Vamos todos morrer, é isso? Por isso está deitado aí?

– Não.

– Diga-nos, pelo amor de Deus! - gritou o oficial.

– Querem saber por que estou deitado aqui?

– Sim!

– Querem mesmo saber?

– Diga-nos!

– Sim, lhes direi, direi porque estou deitado aqui. Mas que Deus me perdoe, e que Ele nos ajude, porque vocês não sabem o que estão me pedindo.

– Diga-nos!

Eu realmente sinto por não poder escrever as palavras dele. Ninguém poderia. Mas peço que não alimentem sentimentos negativos em relação a mim; não conto o famigerado segredo porque eu mesmo não o sei. Apenas imagino que esteja relacionado à descoberta do responsável de todos os nossos problemas ou algo do gênero.

Aqueles homens e mulheres, todos vestidos, decidiram deitar-se na calçada. Não estavam loucos, não haviam caído. Aparentavam olhar o céu, a rua... Mas estavam olhando para si mesmos, tentando descobrir algo mais adequado à situação além de deitar-se.

O condomínio ofereceu um acordo, no qual pagaria por todas as despesas médicas. Mas a mulher, orientada por um homem, que já andou na rua, de terno, almejava uma indenização milionária. Afinal de contas “minha filha poderia ter morrido! E porque tentou acender um cigarro enquanto estava pendurada naquela 'armadilha'! Se houvesse placas dizendo que era proibido fumar ela estaria bem!” - dizia ela. O pior é que aquilo fazia sentido para alguém.

PS: Há um link, semi-secreto, neste blog. Ele o levará à representação gráfica em movimento do que ocorreu. E Radiohead é o que há, ficando somente atrás de água e outras coisas.