Abraxas

Postado por Rafael em ,

Cheguei a um ponto em que não sei o que sou eu. E apesar de não acreditar na polarização “bem e mal”, tão comum na literatura barata e amplamente difundida pelas mídias de massa, não sei em qual grupo me encaixaria.

Sempre achei que era uma boa pessoa, no entanto, imagino que todos pensem isso de si mesmos. E não posso crer em meu julgamento no assunto, já que estou há muito tempo em minha mente. Tampouco posso crer nos julgamentos de outrem, que podem não me conhecer como me conheço. Paradoxal...


Aquela mulher, uma mãe, e a pequena menina, sua filha. A mãe julgava-se boa; a menina era esperta o bastante para saber que ambas não tomavam decisões sensatas.

A mulher processava o condomínio no qual morava, pois sua filha havia se machucado no que ela chamou de “armadilha letal”. O fato é que sua filha, que brincava no parquinho, caiu e fraturou o braço além de deslocar o ombro direito. Segundo a mãe, o acidente foi ocasionado pela falta de sinalização adequada...

Aquele homem, vestindo um terno, andava pela rua. Mas, repentinamente, decidiu deitar-se na calçada. E lá ficou, até que outro homem, também de terno, tropeçou em seu corpo:

– Jesus! Perdoe-me, eu não o vi aí. Você está bem?

– Sim.

– O que houve, você caiu?

– Não. Estou bem. Por favor, deixe-me em paz.

– Você esteve bebendo.

– Não estive bebendo.

– Por que está deitado no meio da calçada? Você poderia ter quebrado meu pescoço!

–...

– Olhe, o que há de errado? Aqui, deixe-me ajudá-lo.

– Não! Não toque em mim!

Não demorou muito até várias pessoas começaram a aglomerar-se para ver o que o estava acontecendo:

– O que há com ele? Ele caiu?

– Não... Ele não caiu. - respondeu o rapaz.

– Ele está machucado?

– Não, por favor, todos vocês, deixem-me em paz - disse o homem.

– Ele deve estar louco.

– Não sou louco, apenas deixem-me em paz.

– Por que está deitado aí? Por que não me diz qual o problema? - indagou o rapaz que tropeçou.

­– Veja, não posso lhe dizer... Não seria correto.

Então chegou um oficial - um dos que observam as pessoas assegurando-se de que o direito de vingança continua sendo monopolizado pelo Estado – e perguntou:

– Você está bem?

– Estou bem. Por favor, apenas deixe-me deitar aqui.

– Temo que não possa deixar que faça isso senhor.

– Apenas me diga porque está deitado ai! Diga-me! - exclamou o rapaz.

– Você não quer saber, acredite em mim.

– O que há? Vamos todos morrer, é isso? Por isso está deitado aí?

– Não.

– Diga-nos, pelo amor de Deus! - gritou o oficial.

– Querem saber por que estou deitado aqui?

– Sim!

– Querem mesmo saber?

– Diga-nos!

– Sim, lhes direi, direi porque estou deitado aqui. Mas que Deus me perdoe, e que Ele nos ajude, porque vocês não sabem o que estão me pedindo.

– Diga-nos!

Eu realmente sinto por não poder escrever as palavras dele. Ninguém poderia. Mas peço que não alimentem sentimentos negativos em relação a mim; não conto o famigerado segredo porque eu mesmo não o sei. Apenas imagino que esteja relacionado à descoberta do responsável de todos os nossos problemas ou algo do gênero.

Aqueles homens e mulheres, todos vestidos, decidiram deitar-se na calçada. Não estavam loucos, não haviam caído. Aparentavam olhar o céu, a rua... Mas estavam olhando para si mesmos, tentando descobrir algo mais adequado à situação além de deitar-se.

O condomínio ofereceu um acordo, no qual pagaria por todas as despesas médicas. Mas a mulher, orientada por um homem, que já andou na rua, de terno, almejava uma indenização milionária. Afinal de contas “minha filha poderia ter morrido! E porque tentou acender um cigarro enquanto estava pendurada naquela 'armadilha'! Se houvesse placas dizendo que era proibido fumar ela estaria bem!” - dizia ela. O pior é que aquilo fazia sentido para alguém.

PS: Há um link, semi-secreto, neste blog. Ele o levará à representação gráfica em movimento do que ocorreu. E Radiohead é o que há, ficando somente atrás de água e outras coisas.

Comentários (4)

    Olá
    Vim aqui retribuir a visita. Lí e relí seu texto. Achei muito profundo. A neura do seu texto é pior que a do meu! Entre homens deitados na calçada e mulheres de vida roxa, só posso crer que o ser humano está cada vez mais perdido e que passamos por tempos de mudança. E, como todo tempo de mudança que se preze...esta fase de transição está fazendo o caos.
    Portanto, não é só vc que não sabe bem quem é... Ninguém sabe ao certo quem é... É a tal roxidão da vida...

    raafa, que isso? como pode não e contar que tem estudado essas coisas estranhas?

    gostei bastante da crônica, e quanto a sua incerteza, trabalharemos nela, não é mesmo?

    bjks!

    Puta que tezão de texto. Muito bom mesmo.
    Uma pequena pérola, entre outras, porém superior.
    Me faz lembrar do homem que veria o pôr do sol em uma rua movimentada de São Paulo do "Em terra de cego que tem olho é... conflitante."
    Mas acima de tudo me faz pensar que o mistério pode surgir em uma pequena crônica, um pequeno conto, um mistério, um suspense fortíssimo, que faz a leitura algo extremamente agradável.

    CAramba! Tava na cara que nosso amigo conflitante ia se amarar no texto.

    Ser bom ou ser mau é uma esperança de aceitação da sociedade. É extremamente relativo e condicional. Vc pode ser bom por alimentar os pobres, saciando-lhes a necessidades imediatas e mau oferecendo gratuitamente o que todos conseguimos como fruto de nosso esforço.
    Ser bom é consciência.
    Ser mau é insatisfação.


    Não consigo mais ver o fato de deitar no chão e raciocinar sobre QUALQUER COISA como aspecto positivo ou crescimento interior. Quem sabe não seja uma forma catatônica de manifestar a surpresa e certa rebelião causada pela nova descoberta?

    Não, eu naum sou pensimista, magina!!!