(vinte e) Cinco Minutos: Um conto de verão

Postado por Rafael em

Quando trovejava era possível ver o estranho menino sentado na torre da matriz. É muito incomum que crianças fiquem em locais tão altos, ainda mais em tempos tempestuosos e à noite. Mas ninguém parecia estar ciente deste problema. É como se o vissem, mas não pudessem notá-lo.

A cada relâmpago também era possível ver que horas marcavam o antigo relógio da igreja. Um clarão, onze e trinta e dois. Onze e trinta e sete. Onze e quarenta e oito... Meia noite e nada do último ônibus aparecer. As pessoas, que formavam uma pequena aglomeração espremida sob o ponto de ônibus, não exibiam sinais de decepção, embora estivessem molhadas e cansadas de suas horas extras.

Mas não estavam extenuadas da rotina. Ainda não se pode afirmar formalmente, mas parece que após certo tempo de vivência em rotina ela já não é mais estressante ou algo que se tenta evitar. Aliás, escapar da rotina é uma ideia tão estranha quanto escapar da incumbência de respirar – pode ser bom, em certos casos, mas acarreta em mudanças incontroláveis, ainda que previsíveis.

Como o suicídio não é de interesse nesta narrativa, voltemos à rotina. Bom, o ponto de ônibus era desses comuns antigamente, com uma proteção branca, abobadada, na parte superior, elevada e apoiada por hastes verticais. Tal estrutura era relativamente eficiente para proteger futuros passageiros do Sol, mas se mostrava muito inadequada para fazê-lo durante chuvas. Ainda mais em tempestades como a daquela noite.

– Com esse vento ninguém pode! – disse, quase gritando, um senhor com capote e chapéu, ambos pretos.

– Nem diga! Antes de sair sempre dou uma olhadinha na previsão do tempo, daí peguei o guarda-chuva, né? Pra quê?! Com essa ventania me molhei todo! – falou um metalúrgico, bem humorado, ainda que o guarda-chuva fosse um estorvo naquele momento, tanto quanto fora durante todo o dia.

E antes que o menino sentado na torre dos sinos da matriz entendesse porque um homem falou com o outro, todos lá embaixo estavam conversando. Uns seguiam o exemplo do metalúrgico e falavam sobre o que fizeram para se prevenirem da chuva e, ainda mais importante, como tais preparos foram suplantados pela tempestade. Outros discutiam sobre o trabalho, família, doenças nos ossos... E tão de repente quanto o início das conversar, muitos se deram conta de que falar sobre a rotina era um modo saudável de evadi-la! Uma boa falação com pessoas presas na mesma situação era quase uma terapia para os que não tinham dinheiro para conversar com psicólogos ou psiquiatras, “se é que tem diferença, né?”, nem dispunham de familiares que prestassem para conversar por 5 minutos.

Entre aquelas pessoas a sensação era de paz profunda e havia carinho mútuo entre todos. E foi com certa tristeza que notaram um ônibus que se aproximava. Tão logo embarcassem no veículo, suas novíssimas amizades estariam desfeitas...

A tristeza só não foi maior do que a felicidade quando viram que não, não era um ônibus que se aproximava. Acontece que com a chuva intensa e os faróis altos, era uma tarefa difícil distinguir um caminhão de um ônibus.

[...]

Outro clarão, meia noite e vinte e quatro, e ao longe se viam os faróis de outro grande veículo que se aproximava. Dessa vez era evidente que se tratava de um ônibus, porquanto era visível o letreiro laranja que piscava o nome de uma linha.

Novamente houve muita tristeza, dessa vez misturada com um pouquinho de melancolia. Assim que entrassem no ônibus começaria a briga pelos lugares unitários, pelas barras verticais e pelos locais nos quais poderiam se segurar mais próximos de seus pontos de equilíbrio. Mas esse sentimento logo se dissipou quando as primeiras pessoas que embarcaram resolveram que seria bom continuar a prosear! E as pessoas da fila então notaram o poder daquela socialização de 25 minutos. Poderiam conversar durante todo o trajeto, não só naquela noite como nos dias subsequentes! Novamente, houve a sensação paz e carinho entre todos. Infelizmente tais sensações são mundanas e nada divinas.

[...]

Pouco mais de três pontos depois, uma passageira que estava no ponto da matriz pensou:

– Espera um pouco... se for assim, a gente vai ter que se cumprimentar todos os dias, beijinho pra cá, beijinho pra lá... Pior ainda, vamos ter que conversar!

Então ela sentiu uma grande repulsa e raiva de todas aquelas pessoas que estavam no ônibus. Cortou rapidamente a conversa que travava com uma moça do RH, que conhecia de vista há mais de 5 anos, fingindo uma extenuação incontrolável enquanto encostava a cabeça no vidro frio e fechava os olhos.

Ela não era a única a tomar uma atitude antissocial. Aliás, não havia ser humano ali que não sentisse o mesmo asco pelos demais, pela chuva, pelo ônibus, pela rotina, pela vida, pela “porra do Universo”. Curiosamente, ninguém estava irritado com a igreja matriz e com o seu ponto. Admiradores da arquitetura? Não... Estavam apenas temerosos da ira de uma entidade metafísica humanizada qualquer.

[...]

Passou o pouco esperando fim de semana e chegou a segunda-feira. O dia no qual todos seriam tão arrogantes, individualistas e indiferentes quanto possível! Principalmente com aqueles conversadores baratos. Agora estavam todos cientes do perigo de uma conversa casual e estavam dispostos a jamais sacrificar sua liberdade por um papinho de meia hora.

E assim foi. Ninguém falou com ninguém. Não houve quem ousasse romper o silêncio, olhar no olho, sorrir. “Melhor pagar um psicólogo (agora muitos sabiam que “psicólogo é o cara que cobra pra conversar e psiquiatra é o que cuida da saúde da cabeça das pessoas”) ou arranjar um amante pra conversar. Estranhos nunca mais!”.

Deus, sentado ao lado dos sinos da igreja, notou o que se passava. Fechou seus olhos divinamente humanos e falou de si mesmo, na terceira pessoa, com uma voz de trovão:

– E viu Deus que isso era bom. Adequado.

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